sábado, 6 de dezembro de 2008

A linguagem dos pássaros

Ó tu que aprecias a verdade! Não busques analogia nisto; a existência deste Ser sem igual não admite nenhuma analogia. Sua glória abateu a inteligência e a razão; uma e outra estão numa indizível estupefação. Nem os profetas, nem os mensageiros celestes compreenderam a mais mínima partícula do todo, (...) curvaram-se sobre o pó , dizendo:

(...) como não há outro ser exceto Ele nos dois mundos, com quem senão com Ele, se poderá estar em relação de afeto e de amor? O Oceano agita suas ondas para proclamar a Sua essência . Aquele que não sabe encontrar a Sua essência nesse Oceano deixa de existir, pois não encontra outra coisa, senão negação e nada. (...)

Aniquila-te!, eis aqui tudo, tal é a perfeição. Renuncia a ti mesmo; este é o penhor de tua união com Ele. Perde-te Nele para penetrar neste mistério, tudo o mais é supérfluo.(...) não tenha mais que um coração, uma face, uma quibla(*).


* centro de atração, direção, materialização da intenção.

sexta-feira, 27 de junho de 2008

Nirvana

“Tudo que é sujeito a causação”, disse o Buda a Maitreya- “é como uma miragem, um sonho,a lua vista na água, um eco; nem removível, nem existente por si. E a própria Roda da Lei é descrita nem como ´ela é ` nem como ´ela não é `. E tendo ouvido e recebido esta Lei com alegria, ide agora, felizes para sempre”. (...)

Assim, o Mahayana, “a grande (maha) barca (yana)” , é uma embarcação sobre a qual todos viajam- e, de fato, estão viajando- indo a lugar nenhum, já que todos estão extintos. É um passeio, um festival de júbilo. Ao passo que o Himayana, “a abandonada (hina) barca (yana)" , é uma embarcação diligente relativamente pequena, transportando apenas iogues através do redemoinho que eles desdenham, a caminho de absolutamente nenhum lugar !

quinta-feira, 19 de junho de 2008

A Era da Comparação

Quando os ousados navegadores do Ocidente, transportando em suas quilhas as sementes de uma nova era titânica, por volta de 1.500 d.C., aportavam ao longo das costas não apenas da América, mas também da Índia, e da China, floresciam no Velho Mundo as quatro civilizações desenvolvidas da Europa e do Levante, da Índia e do Extremo Oriente, cada uma com sua própria mitologia e considerando-se o único centro autorizado de espiritualidade e merecimento, sob o céu. Sabemos hoje que aquelas mitologias estão exauridas ou, pelo menos, ameaçadas de acabar : cada qual satisfeita de si dentro de seu próprio horizonte, dissolvendo-se, juntamente com seus deuses, em uma única ordem emergente de sociedade, em que, como Nietzsche em uma obra dedicada ao Espírito Livre, “as várias visões de mundo, costumes e culturas serão comparadas e vivenciadas lado a lado, de maneira impossível antes, quando a inclinação sempre regional de cada cultura estava de acordo com as raízes temporais e locais de seu próprio estilo artístico. Agora, finalmente, uma sensibilidade estética aguçada decidirá entre as muitas formas existentes que poderão ser comparadas- e se deixará morrer a maioria. Da mesma forma, está ocorrendo uma seleção entre as formas e costumes das moralidades superiores, cujo o fim só poderá ser a ruína dos sistemas inferiores. É uma era de comparações! Essa é sua glória- mas, mais justamente, também sua mágoa! Não tenhamos medo dessa mágoa.”

Das quatro direções, reuniram-se os quatro paradigmas: respectivamente, da razão humana e do indivíduo responsável, da revelação sobrenatural e da única verdadeira comunidade sob Deus, do êxtase ióguico na grande vacuidade imanente e da harmonia espontânea entre a ordem do céu e da terra – Prometeu, Jó, o Buda sentado, de olhos fechados, e o sábio errante, de olhos abertos.

E é hora de considerar cada um em sua puerilidade, bem como em sua majestade, de maneira bastante fria, sem indulgência ou desdém . Pois embora a Vida, como diz Nietzsche, “deseje ser iludida e viva da ilusão”, faz-se também necessário, em certas ocasiões, um momento de Verdade.”

sexta-feira, 13 de junho de 2008

“Sila ersinarsinivdluge”

“Como pode um homem saber como é a vida de uma mulher ?”, perguntou uma mulher abissínia , citada por Frobenius.

“ A vida de uma mulher é bem diferente da de um homem. Deus fez assim. Um homem é o mesmo, da época da circuncisão até o fim. É o mesmo antes de ter procurado por uma mulher pela primeira vez e depois. Mas, no dia em que a mulher goza de seu primeiro amor, ela é partida em duas. Torna-se outra mulher naquele dia. O homem depois do seu primeiro amor é o mesmo que foi antes. A mulher é, a partir do dia do seu primeiro amor, outra. E continua assim por toda a vida. O homem passa uma noite com a mulher e vai embora. Sua vida e seu corpo são sempre iguais. A mulher engravida. Como mãe ela é diferente da mulher sem filho. Ela carrega a marca daquela noite ao longo de nove meses em sua barriga. Algo cresce. Algo surge em sua vida, que jamais a deixa. Ela é mãe. Ela é e permanece mãe mesmo que seu filho morra, mesmo que todos os seus filhos morram. Porque, um dia, ela carregou o filho sob seu coração. E ele jamais sai do seu coração. Nem mesmo quando morre. E isso, o homem não sabe o que é. Ele não sabe nada. Ele não conhece a diferença entre antes e depois do amor, antes e depois da maternidade. Ele não sabe nada. Só a mulher pode saber e falar disso. É por isso que nossos maridos não nos podem dizer o que devemos fazer. A mulher só pode fazer uma coisa : respeitar a si mesma. Manter-se íntegra. Ela tem sempre que estar de acordo com sua natureza. Ela tem sempre que ser donzela e mãe. Antes de cada amor, ela é uma virgem, depois de cada amor, uma mãe. Nisso, pode-se ver se ela é uma mulher ou não.”

É certamente na interação e fertilização espiritual mútua dos sexos, não menos que nas lições aprendidas dos reinos animal, vegetal e celestial dos deuses, ou nas profundidades da experiência do transe xamanista, que se devem buscar as motivações das metamorfoses do mito.

quarta-feira, 21 de maio de 2008

Sofrimento e êxtase

(...) a tragédia grega era a inflexão poética da mitologia, a catarse trágica da emoção através da compaixão e do terror, o correspondente à purificação do espírito através do rito. A tragédia transmuta o sofrimento em êxtase. (...) Livre do vínculo com nossa parte mortal, através da contemplação daquilo que é grave e constante no sofrimento humano- o ser humano une-se simultaneamente , em compaixão trágica com o “sofredor humano” e em terror trágico com a “causa secreta”. Em consequência disso, um dia, com um grito de júbilo, o espírito pode saltar para aquilo que subitamente reconhece por trás da máscara. A tragédia dissolve-se e surge o mito.

“ Vossa face, a qual um jovem se esforçasse por imaginá-la, conceberia como a de um jovem ; um adulto, como a de um homem; um velho, como a de um velho. Quem poderia imaginar o mais verdadeiro e o mais adequado de todos os rostos- de todos e de cada um- como se não fosse de nenhum outro ? E como poderia ele imaginar , além de todos os conceitos, de todas as cores, adornos, e toda a beleza de todos os rostos ? Por conseguinte, aquele que avança para observar o Vosso rosto, enquanto ele formar qualquer conceito Dele, está longe de Vossa face. Porque todo conceito de face não alcança a Vossa face. E toda beleza que pode ser concebida é menor que a beleza de Vosso rosto; todas as faces tem beleza, mas nenhuma é a própria beleza, mas a Vossa face tem beleza e por ter beleza é ser. Ela é a forma que dá existência a cada forma bela. Em todos os rostos é visto o Rosto dos rostos, por trás de um véu e de um enigma.; não obstante desvelado, ele não é visto, até que acima de todas as faces um homem penetre em certo segredo e silêncio, onde não há nenhum conhecimento ou conceito de rosto. Esta névoa, nuvem, escuridão, revelará que Vossa face não pode ser encontrada a não ser velada; mas a própria escuridão revelará que vossa face está ali, além de todos os véus.”

(Nicolau de Cusa)

domingo, 13 de abril de 2008

Antes do Nascer do Sol



(...)

No que abençoa eu me tornei, e no que diz sim : e para isso lutei longamente e fui lutador, para que um dia tivesse as mãos livres para abençoar.

Esta porém é minha benção : estar sobre cada coisa como o seu céu próprio, como seu teto redondo,sua campânula de azul e eterna segurança : e venturoso é aquele que abençoa assim.

Pois todas as coisas estão batizadas na nascente da eternidade e para além de bem e mal ; bem e mal mesmo ,porém, são apenas sombras interpostas e úmidas tribulações e nuvens que passam. (...) sobre todas as coisas está o céu Acaso, o céu Inocência, o céu Eventualidade, o céu Desenvoltura.

"Por eventualidade"- (...) que eu restitui a todas as coisas; eu as redimi da servidão dos fins. Essa liberdade e serenidade celeste pus eu, igual a uma campânula de azul, sobre todas as coisas, quando ensinei que sobre elas e através delas nenhuma "vontade eterna" - quer.

(...) esta venturosa segurança encontrei em todas as coisas : que elas preferem ainda, sobre os pés do acaso, dançar.



o céu sobre mim, tu que és puro ! tu que és alto, esta é para mim tua pureza : seres para mim uma pista de dança para acasos divinos, seres para mim uma mesa de deuses para divinos dados e jogadores de dados.

Mas tu coras ? Pronunciei o impronuciável ? Amaldiçoei ao querer abençoar-te ? Ou é a vergonha de estar a dois que te faz corar ? Mandas-me partir e calar, porque agora – o dia vem ? O mundo é profundo- : e mais profundo do que o dia jamais pensou. Nem tudo pode ter palavras diante do dia. Mas o dia vem.

Ó céu sobre mim, tu que és pudico ! Tu que és ardoroso ! Oh, tu que és minha felicidade antes do nascer do sol ! O dia vem : apartemo-nos então.



segunda-feira, 31 de março de 2008

Sou como o resto de uma nuvem de outono errando inutilmente pelo céu, ó meu sempre e glorioso sol. O teu contato ainda não dissolveu a minha névoa para integrar-me na tua luz, e por isso vou contando os meses e os anos que vivo longe de ti.
Se é da tua vontade e se é para a tua recreação, toma então esta minha oca leviandade, tinge-a de cores, doura-a com ouro, entrega-a ao vento lascivo e dispersa-a em variegadas maravilhas.
E se for mesmo da tua vontade acabar com esse brinquedo, de noite, eu me dissolverei e desaparecerei por aí, na escuridão, e quem sabe se no sorriso da manhã alva, se numa frescura de transparente pureza.

Tagore