sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Lázaro

Jesus olhou para o alto: eu sou a Ressureição e a Vida, o que crê em mim, ainda que esteja morto, viverá, e todo aquele que vive e crê em mim, não morrerá eternamente, crês nisso? Ela respondeu: sim, Senhor, eu creio que sois o Cristo, filho de Deus, que devia vir a este mundo.
(...)

Lázaro, porque me olhas tanto ? Porque és belo (...) Ele me segura pelos ombros: meu irmão... meu querido irmão... e me acaricia a fronte, os cabelos, a boca. Depois me abraça. Aturdido, beijo-lhe a face, os ombros, o peito. Até quando posso ficar contigo? Sempre ficarás comigo, Lázaro, porque crês em mim. Sim, mas até quando poderei tocar em Ti? Ele fecha os olhos, suas pálpebras escurecem: daqui há pouco, Lázaro, não nos veremos mais. Ajoelho-me, agarro-me aos seus pés, ouço a minha voz convulsionada : tenho medo, tenho medo de não agüentar o que resta sem a Tua presença. Quero estar sempre onde Tu estiveres, quero Te amar até morrer de novo, quero sentir tudo o que Tu sentires, compreendes? (...) E se for mais difícil do que tudo o que imaginas ? Mais difícil, irmão Jesus, é não ter toda a sua dor cravada em mim

(...).

Há um homem diferente no pátio. Vê-se que ele ama Jesus mais do que a si mesmo. O amor desse homem é diferente do meu amor : é um amor de mandíbulas cerradas, de olhar oblíquo, de desespero escuro. (...) Por favor, é preciso que me compreendam. Esse amor de Judas, o Iscariote, não é um amor ideal porque é ciumento e agressivo (...) e o olhar que lança ao redor é um olhar que diz : o meu amor é mais forte, é mais sangue, vocês não O possuirão.
(...)
eu acho que o amor de Iscariote tem que ser assim como é (...): eu te amo, e não sei se você compreende, Judas, o que significa quando uma pessoa, assim como eu, diz que te ama (...) Antes de minha morte eu tocava nas coisas, sim, tocava-as, mas não descobria o mais fundo (...) a sensação daquele toque não se fixava em mim. Mas se eu te tocasse agora (mas não quero) a tua carne sofreria aquela febre mais intensa, a febre viva e compassada, a minha febre (...) Se eu pudesse falar dessa dor, dor que não é simplesmente a ausência de quem se ama, mas uma certeza tristíssima de que daqui por diante, o coração dos homens se tornará mais escuro.... mais, isso é possível ? Ainda mais ? Depois de tudo consumado. Tudo.... depois de consumado o que, Lázaro? Não sei, um sopro de cinza, uma torre derrubada, uma lança, não sei. Depois de tudo consumado, tudo se fará de novo, outra vez, sempre, eternamente. E sendo assim, não será de luz, um dia, o coração dos homens? Não. Mas então, porque ? Por amor, compreendes ? Por amor o sacrifício é sempre renovado, por amor há uma entrega contínua, ainda que sem esperança (...). Depois de tudo, ouve, o amor tomará posse do universo, depois do sacrifício que não sabes ainda, os homens serão cordeiros e a terra será um pasto novo, fecundo e inocente.


(.........)


Lázaro meu filhinho, o Jesus de quem falas está morto há muito tempo, e para os homens de agora nunca ressuscitou, nem está em lugar algum. Não te aborreças mais, sabemos que Ele nunca existiu. Ele foi apenas uma idéia muito louvável (...) essa imagem poderia crescer de tal forma que aplacaria definitivamente a fera dentro do homem. Mas não deu certo. Pelo contrário. (...) Os homens não têm consolo algum, lutam para dar alimento, roupa, e algumas alegrias aos seus filhos e a si próprios. Não há nada além disso. (...) Oh, como havia primavera na minha alma quando o Teu rosto existia sobre o rosto dos homens. Entra na cela, filho, entra! Agora deita-te, assim. (...) olha, Lázaro, nós, os monges, estamos aqui, mas somos o único convento sobre a terra, compreendeste ? O único. E também não acreditamos mais no Cristo, apenas não temos para onde ir, já somos muito velhos... ah ! já sei , olhas o crucifixo na parede, não é ? E estás pensando porque não tiramos os crucifixos das paredes (...)? É muito simples, Lázaro (...): são muitos crucifixos, não temos um depósito para os colocar, entendeste ?

(...)


E agora, Lázaro, não se ouve mais o nome de Jesus, e o símbolo da cruz é símbolo de ameaça. Estas dormindo, Lázaro ? Dorme, dorme. Também vou dormir. O mundo inteiro dorme. E não te aborreças, mas.... além de sabermos que o teu Jesus nunca existiu, sabemos também que Deus ... Oh, oh sabemos.... Deus, Lázaro, Deus agora a grande massa informe, a grande massa movediça, a grande massa sem lucidez. Dorme bem, filhinho.

Lázaro grita. Um grito avassalador. Um rugido. Arregala os olhos e vê Marta. Ela está de pé, junto à cama. As duas mãos sobre a boca.

sábado, 24 de outubro de 2009



Goi, goi, pai coração de boi, pão pão Joana de Ruão, goi, goi, o pai não sabe o que de dentro de mim é, eu sou três, perfeito querubim (...), eu sou criança de muito entendimento, de muita verdade, de muita poesia (...) o que vale é a poesia e não tratados, o que vale é a planície doirada, o vale cor de beterraba, o que vale é o três dentro de mim, noiteaurora, pombamora, branco e vermelho dentro de mim, pai tristeza que não me quer querubim (...) goi, goi, alecrim, goi goi espigão, goi goi roseiralmirim. (...)
Amor feito de vísceras , de matérias várias, de mel, amo tudo o que pode ser, amo o que é, amodeio tudo o que pode e é. Louvado seja esse bem-estar de assim ser, louvado seja o meu dorso estriado, minhas misérias, glórias de outro, a expectativa de vinganças, abrindo o poço para que eu desapareça, coisa muito a seu gosto, com a clarabóia escancarada para que eu resolva voar, para que eu resolva assumir o ser da cigarra, saindo pela clarabóia e morrendo depois transparência, rigidez acetinada, glória a todos esses que cantam até a morte : glória.
(...)
Ai, goi goi, se é verdade que o amor vincit omnia
(...)
Quero lhes contar do meu ser a três, mas é tão difícil, goi goi, é ser de um jeito inteiriço, cheio de realeza, é ser casto e despudorado, é um ser que vocês só conheceriam num vir a ser, é como explicar à crisálida que ela é casulo agora e depois alvorada, é como explicar o vir a ser de um ser que só se sabe no AGORA, ai, como explicar o DEPOIS de um ser que só se sabe no instante ?

Goi goi, estão vendo que esforço faz a minha lingüinha para dizer dos mistérios ? !

domingo, 18 de outubro de 2009


2- MUDAR O MUNDO

Na conclusão de minha primeira conferência citei que “a concepção humanística considera uma criança (...)” Em outro momento, ele foi além desenvolvendo essa imagem observando que “ o solo e a liberdade requeridos para o crescimento de um homem são incomensuravelmente mais difíceis de se descobrir e se obter. .. e o completo crescimento que pode ser esperado, não pode ser definido ou demonstrado; ele é sutil e complexo, só pode ser sentido através de uma intuição delicada e vagamente apreendido pela imaginação e pelo respeito. (...)

“A educação deveria ser guiada pelo espírito de reverência , por algo sagrado indefinível , ilimitado , algo individual e estranhamente precioso, o princípio crescente da vida, um fragmento encarnado do obstinado esforço do mundo”.

Wilhelm von Humboldt :

toda cultura brota única e imediatamente da vida interior da alma e só pode ser estimulada a partir da natureza humana, e nunca produzida por maquinações externas artificiais.... o que quer que não brote da livre escolha do homem, não penetra em seu Ser mais profundo, mas ainda permanece estranho a sua verdadeira natureza. Nesse caso, o homem não atua movido com energias verdadeiramente humanas, mas apenas com exatidão mecânica”.

Se colocarmos a natureza humana sob essa luz:

“todos os camponeses e artesãos poderiam ser elevados à condição de artistas, ou seja, homens que amam o seu trabalho em si mesmo, o tornam melhor através de seu gênio plástico e de sua habilidade inventiva. Deste modo, eles cultivam o intelecto, enobrecem seu caráter e exaltam e refinam seus prazeres.”

A oposição de Russel à prática educacional coercitiva estava ligada ao seu desejo de uma reconstrução radical da sociedade, “uma eliminação de todas as fontes de opressão, uma liberação das energias construtivas do homem, com um modo totalmente novo de conceber e regular as relações :

“ Em meio aos mitos e às histerias de ódios que se opõem, é difícil fazer a verdade atingir as massas das pessoas, ou mesmo espalhar o hábito de formar opiniões baseadas em evidências e não na paixão. No entanto, em última instância, é nestas coisas, e não em qualquer panacéia política, que as esperanças do mundo devem residir.”

sábado, 17 de outubro de 2009

PROBLEMAS DO CONHECIMENTO E DA LIBERDADE.


NOAM CHOMSKY

Mas a gratidão pode ser compartilhada por todos aqueles que valorizam a razão, a liberdade e a justiça, e que são cativados pela visão de Russell tem do “mundo que todos devemos buscar”:

“um mundo em que o espírito criativo está vivo, no qual a vida é uma aventura cheia de esperança e de alegria, baseada no impulso de construir e não no desejo de reter o que se possui ou de tomar o que outros possuem. Deve ser um mundo em que os afetos tenham livre curso, no qual o amor seja purgado do desejo de dominação e a crueldade e a inveja tenham sido dissipadas pela felicidade e pelo desenvolvimento sem entraves de todos os instintos que erguem a vida e a preenchem com os prazeres da mente.”


1) INTERPRETAR O MUNDO

Ele propôs que os limites do conhecimento humano são determinados pelas regras que limitam as hipóteses admissíveis, que poderiam ser concebidas como bastante restritivas . Trata-se de uma idéia perfeitamente inteligível.

A imagem de uma mente, inicialmente irrestrita, desencadeada livremente em direções arbitrárias, pode sugerir, em princípio , uma visão mais rica e esperançosa da liberdade e da criatividade humanas. Mas acho que essa conclusão está errada. Russel estava certo em intitular seus estudos em “ Human Knowledge : its scope and limits” (O conhecimento humano: seu escopo e limites). Os princípios da mente fornece os escopos e os limites da criatividade humana. Sem esses princípios, a compreensão científica e os atos criativos não seriam possíveis. Se todas as hipóteses são inicialmente equivalentes, então nenhuma compreensão científica pode ser atingida, pois não haverá meios de selecionar, dentro de um vasto arranjo, teorias compatíveis com nossa evidência empírica limitada e, por hipótese, igualmente acessíveis à mente.

Alguém que abandona todas as formas, todas as condições e restrições, e age de maneira aleatória e inteiramente à vontade, com certeza não está engajado em uma criação artística, seja lá o que ele possa estar fazendo. “O espírito da poesia, como todos os poderes vivos, deve necessariamente circunscrever-se a regras”
Coleridge escreveu : “talvez às leis de sua própria origem” Como Russel frequentemente expressava , “ se a verdadeira vida” do homem consiste “ em Arte e Pensamento e Amor, na criação e contemplação do belo e na compreensão científica do mundo” . Se isto é “a verdadeira glória do homem” , então são os princípios intrínsecos da mente que deveriam ser o objeto de nosso espanto e, se possível, das nossas investigações. Ao investigarmos algumas das mais conhecidas realizações da inteligência humana, o uso da linguagem, por exemplo, somos imediatamente tocados pelo caráter criativo delas, pelo caráter de criação livre dentro de um sistema de regras. Russel escreveu que “a concepção humanística considera uma criança como um jardineiro considera uma árvore jovem, isto é, como algo com uma certa natureza intrínseca, que se desenvolverá adquirindo uma forma admirável , uma vez conferido solo apropriado, ar e luz”.
Acho bastante justo dizer que é a concepção humanística do homem que tem avançado e conseguido ganhar substância à medida que descobrimos os ricos sistemas de estruturas , invariantes e princípios subjacentes às realizações humanas mais humildes.