sábado, 29 de outubro de 2011

Num recanto de uma sala junto a uma janela entreaberta


estou como se estivesse protegido por uma cúpula de folhagem

e escrevo não sobre a folha mas sobre a pedra azul do dia

e as minha palavras refletem o murmúrio do sol e a língua do vento

Talvez elas venham também de um fundo obscuro

procurar o espaço visível com a sua sede submersa

mas eu não conheço o que as move nem o seu alvo oscilante

No entanto a claridade da página é um álcool leve

que vai ardendo ao sopro da matéria

que vou vislumbrando em lentos movimentos

e assim vejo o vento ordenando-se como uma veia

porque a transparência é cega e o seu silêncio emudece-me.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Se há um ser que tudo vê ele não vê

Ninguém é o sósia ou o duplo de si porque ninguém encontra
o semelhante em si As figuras que ascendem
do magma interior são metáforas mutiladas
que perderam o elo com o objeto inacessível
que nunca aparece nem mesmo sob uma máscara

O eu oscila entre imagens sobre um solo enrugado
e a cada passo deixa atrás de si uma estátua de cinza
A identidade não encontra a densidade vertical
um silêncio irredutível envolve o indecifrável

Mas o ser deseja realizar a plena redondez
que é o seu próprio corpo e produzir a erecção do túmido cilindro
que consuma a lasciva plenitude
de um primeiro gozo em que ele é o amante e a cousa amada

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Quinta elegia

Não, não mais buscar: que seja esta voz da madurez,

a essência do teu grito. Gritaste, em verdade,

com a pureza de um pássaro, quando erguido pela estação

que ascende, quase esquece que é um ser desamparado,

coração solitário lançado às alturas, na intimidade

do céu.



(...)



Depois, os degraus do vôo, os degraus – apelo,

até o templo sonhado do futuro- e então os murmúrios,

as fontes que em seu jato impetuoso antecipam a queda,

num jogo promissor... E diante de si, o verão!



Não somente as manhãs de estio, não só a sua

metamorfose em dias que se fazem ternos junto às flores

e no alto, junto às árvores, fortes, poderosos.

Não só o ardor das forças desencadeadas,

não só os caminhos, não só os campos nas tardes,

não só a luz que respira após as tormentas tardias.

Não só a proximidade do sono e um pressentimento

ao crepúsculo... mas as noites! As grandes noites

de verão, e as estrelas, as estrelas da terra!



(...)



Em parte alguma, bem-amada, o mundo existirá, senão

interiormente. Nossa vida transcorre na metamorfose:

sempre decrescendo, o exterior desaparece. (...)

O espírito do tempo cria depósitos imensos de

poder, ele que é informe, como o tenso impulso

que rouba às coisas, logo abandonadas. E esquece

os templos. Mas a prodigalidade de nosso coração

é o mais secreto poupar.



(...)





segunda-feira, 8 de agosto de 2011

A Ilha



(Mar do Norte)



I-



A maré cobrirá estrada e areia

e tudo há de ficar equivalente,

mas a pequena ilha, indiferente,

fecha os olhos; um dique, além, rodeia



seus habitantes; o sono que os gera

em muitos mundos confundiu a espera

calada: sua fala é muito rara;

cada sentença é um epitáfio para



algo que o mar lavrou na praia, alheio,

que chega e fica sem explicação.

E assim é tudo que lhes cai no olhar,



desde a infância: são coisas de outro meio,

grandes demais, sem uso, sem lugar,

que só aumentam sua solidão.







II-

Como numa cratera circular

de lua: as fazendas, cada qual

cercada por um dique, par a par;

como órfãos, penteadas por igual



pelo tufão que as trata com dureza

e mostra-lhes a morte todo o dia.

Então, alguém senta-se em casa e espia

em espelhos oblíquos o que à mesa,



raro, restou. Um jovem da família

abre a porta, ao crepúsculo, e dedilha

o harmônio, como um choro, suavemente;



ele ouvira a canção num porto estranho -,

Lá fora, sobre o dique, do rebanho

das nuvens, uma infla-se, iminente.







III-



Só o que é interno é perto; o mais, distante.

E esse interno é tão denso e a cada instante

mais denso ainda. Impossível descrevê-la.

A ilha é como uma pequena estrela



que o espaço esqueceu e, muda, so

-me em seu inconsciente horror de astro,

de modo que, sem luz, sem deixar rastro,





como ainda a buscar metas extremas,

obscura, em sua auto-inventada via,

prossegue, em rumo cego, à revelia

dos planetas, dos sóis e dos sistemas.







Rainer Maria Rilke (Novos Poemas)

belíssima tradução : Augusto de Campos

quinta-feira, 7 de julho de 2011

XIII

- Queres voar, Samsara? Queres trocar o moroso das pernas
Pela magia das penas, e planar coruscante
Acima da demência? Porque te vejo às tardes (desejosa)
De ser uma das aves retardatárias do pomar.

Aquela ali talvez, rumo ao poente.

Pois pode ser, lhe disse. Santos e lobos
Devem ter tido o meu mesmo pensar. Olhos no céu
Orando, uivando aos corvos.

Então aproximou-se rente ao meu pescoço:
- Esquece texto e sabença: as cadeias do gozo.
E labaredas do intenso te farão o vôo.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

As flores que deixei no chão

As flores que deixei no chão,
as que não colhi para você,
hoje trago todas de volta,
para que elas cresçam para sempre,
não em poemas ou em mármore,
mas onde elas caiam e apodreçam.

E os navios em seus notáveis acasos,
imensos e perecíveis como os heróis,
navios que não seria capaz de comandar,
hoje eu os trago de volta
para que eles naveguem para sempre,
não em miniaturas ou em canções,
mas onde eles se ponham à pique e afundem.

E o menino em cujo os ombros eu me pus,
de quem o tempo eu purguei
com disciplina majestosa e pública,
hoje eu o trago de volta
para enfraquecer para sempre,
não em confissões ou em biografias,
mas onde ele floresça,
crescendo furtivo e cabeludo.

Não é malícia o que me conduz,
o que me leva a renunciar, a trair:
é exautão, eu tendo a te exaurir.
Ouro, marfim, carne, amor, Deus, sangue, lua-
Sou um especialista nesse catálogo.

Meu corpo que já conheceu tão bem a glória,
agora é um museu:
essa parte reconheço por causa de uma boca,
essa outra por causa de uma mão,
essa por umidade, essa por calor.

Quem pode possuir o que não criou?

Estou tão alheio à tua beleza
quanto a crinas de cavalo e cachoeiras.
Esse é meu último catálogo.
Eu já respiro o irrespirável
Eu te amo, eu te amo-
e deixo você avançar para sempre.

Leonard Cohen
(tradução: Fernando Koproski)