quinta-feira, 27 de maio de 2010

Cap. 3- A Palavra por detrás das palavras


III- A herança celto germânica

O saber nativo norte europeu que nos séculos XII e XIII tornou-se (...) a principal inspiração da idade de ouro do romance cortesão. Influências clássicas, bem como islâmicas e cristãs haviam sido detectadas nas lendas.
(...)
Por talvez a revelação mais sugestiva de (...) "cultura altamente cosmopolita " das antigas cortes germânicas é a que pode ser vista na surpreendente descoberta do navio- sepultura Sutton Hoo, (...) na região do Rio Deben (650 a 670).
(...)
O primeiro nome conhecido na história da literatura inglesa pertence a data do sepultamento do navio , ou seja, o do virtuoso poeta Caedmon (...) importante por ter aplicado as técnicas de versificação germânica tradicional (...) Seguido por um desconhecido poeta chamado Beowulf, que cantava no mesmo estilo germânico, para a aristocracia. Beda, o Pai da História Inglesa, estava escrevendo a sua (...) " melhor história escrita por um inglês, antes do século XVII".
Mas em Beda há sinais de influência oriental, (...) penetrou na tradição do Islã, (...), há influência do pensamento islâmico sobre Dante) . Assim, Beowulf é o produto de uma época de tradições já mescladas. O próprio nome Beowulf, "bee-wolf", aparentemente significando urso, sugere afinidades com uma figura de prodigiosa força, (...) o Filho do Urso , cujas manifestações , tanto na América do Norte quanto na Eurásia, apontam para uma origem naquele culto primordial de reverência ao urso (...) que pode ainda ser observado entre os ainos, no Japão.

 
Um segundo animal reconhecido, mitologicamente, que aparece no contexto lendário celto-germânico da Europa, é o porco, o javali, aquele cujos dentes causaram a morte de Adonis e uma ferida na coxa de Ulisses. (...)
Entretanto, enquanto a difusão do tema do Filho do Urso sugere uma ordem circumpolar ártica e uma origem (...) nos cultos e santuários do urso da caverna do Paleolítico, as tradições do porco-javali e do deus morto-ressuscitado são do posterior complexo cultural agrícola do " mediterrâneo" , que chegou à Irlanda pela rota marítima de Gibraltar, por volta de 2500 aC, e que na Inglaterra está representado no grande círculo de Stonehenge (c.1900- 1440 a.C), atribuído no folclore popular à magia do druida Merlin.
Os celtas, como os germânicos, eram árias patriarcais; entretanto, com seu movimento para o oeste até a Gália e as Ilhas Britânicas, (...) eles entraram na esfera da Grande Deusa da Idade do Bronze e de seu filho morto e ressuscitado .
(...)
Tristão, assim como Ulisses, tinha a cicatriz de uma mordida de javali na coxa, e como que insistindo na relação desse tema de amor e morte- com o antigo tema do deus cujo o animal é o javali ; há uma surpreendente passagem da versão de Gottfried (...) , em que Marjadoc - que nutria ele próprio uma paixão por Isolda- sonhou com Tristão, louco de amor, transfigurado em um javali agressivo violando o leito do rei :
Quando Marjadoc dormia, viu um javali horrível e espantoso, vir correndo do bosque. Espumando, com os olhos chamejantes, afiando suas presas e arremessando –se contra o que encontrava em seu caminho, dirigia-se para a corte do rei. Uma multidão de criados do palácio o perseguiu e muitos cavaleiros tentaram cercá-lo.(...) e ao chegar ao quarto do rei, lançou-se porta adentro. Revirou a cama designada ao rei em todas as direções , sujando o leito real e os lençóis com sua espuma. E apesar de todos os súditos do rei terem testemunhado o acontecimento, nenhum deles o impediu.

domingo, 16 de maio de 2010

CAPITULO 2 – O MUNDO TRANSFORMADO

I)- A VIA DO AMOR NOBRE

Um homem, uma mulher,uma mulher, um homem
Tristão Isolda, Isolda Tristão.

“Quanto mais se aviva o fogo da chama do amor” – escreveu o poeta Gottfried , “mais imperativo é o desvario de quem ama. Mas esse sofrimento é tão pleno de amor, essa ansiedade tão encorajadora, que nenhum coração nobre a dispensaria depois de ter sido assim encorajado.”

“ Tenho tanta certeza disso quanto a da minha morte”- (ele escreve) – “ pois aprendi com a própria aflição : o amante nobre ama histórias de amor. Qualquer um que anseie por tais histórias não precisa ir longe, pois eu lhes contarei histórias de amantes nobres que deram provas de puro amor : ele apaixonado, ela apaixonada.”

(...)

O herói céltico , movido por uma graça natural infalível, segue sem medo os impulsos de seu coração . E embora esses possam prometer apenas sofrimento e dor, perigo e desastre- quando seguidos espontaneamente eles são (...) sentidos como oferecendo à existência , se não a luz da vida eterna, ao menos integridade e verdade.

(...)

E para tornar evidente que reconhecia esse grave desafio, o poeta descreveu a gruta do amor, onde os amantes se refugiam do matrimônio sacramentado, como uma capela no coração da natureza :

A gruta fora escavada em tempos pagãos na montanha erma. Ali eles tinham o hábito de se esconder quando desejavam privacidade para fazer amor. Na verdade, onde quer que essa tal gruta fosse encontrada, ela era fechada como uma porta de bronze, e consagrada ao amor, com a inscrição : “ – a gruta para pessoas apaixonadas”.

(...)

Gottfried explica em detalhes a alegoria dessas formas :

O interior circular é Simplicidade no Amor, porque a Simplicidade é o que mais convém para o amor, que não pode suportar quaisquer arestas. No Amor, a malícia e a astúcia são as arestas. A amplitude é o Poder do Amor. É infinito. A altura significa Aspiração, que se eleve em direção às nuvens (...)

As parede da gruta é branca, lisa e reta: a essência da Integridade. Seu brilho uniformemente branco, jamais pode ser colorido; como tampouco qualquer tipo de Suspeita deve ser capaz de encontrar ali abrigo. O piso de mármore é a Constância, em seu verdor e dureza, (...) O leito cristalino do Amor nobre , no centro, foi devidamente consagrado ao nome da Deusa e o artesão, que entalhou o cristal, reconhecera a sua finalidade: Porque o Amor, de fato, deve ser cristalino, transparente e translúcido.

Dentro da gruta, travando a porta de bronze, havia duas barras; e também uma aldrava interna, engenhosamente colocada na parede- exatamente onde Tristão a encontrara. Uma pequena alavanca a controlava, que passava de fora para dentro e a movia de um lado para outro. Além disso, não havia nem fechadura nem chave; e vou dizer-lhes por que.

Não havia fechadura porque qualquer mecanismo que fosse colocado do lado de fora da porta, para fazê-la abrir ou fechar, significaria Traição. Porque, se alguém entra pela porta do Amor quando não foi admitido de dentro, isso não pode ser considerado Amor : é Engodo ou Violência. A porta do Amor está ali- porta do Amor de bronze- para impedir a entrada de qualquer um que não seja por Amor ; e ela é de bronze para que não possibilite a entrada de alguém por nenhum artifício, seja por meio da violência ou da força, esperteza ou perícia , traição ou mentiras. Além do mais, as duas barras , as duas barras no interior, os dois selos do Amor, estão voltados um para a outra. Uma é de cedro , a outra é de marfim. E agora sabereis o seu significado.


A barra de cedro indica a Compreensão e a Razão do Amor ; o marfim, a sua Modéstia e Pureza. E esses dois selos, essas duas barras castas, guardam a morada do Amor a salvo da Traição e da Violência.

A pequena alavanca secreta colocada na aldrava a partir fora, era uma maneta de estanho, e a aldrava- como deve ser- de ouro. A aldrava e a alavanca, isto e aquilo: tampouco poderiam ser mais bem escolhidas por suas qualidades. Porque o estanho é Esforço Suave em relação a uma esperança secreta, enquanto o ouro é a Consumação. Cada um pode dirigir seu próprio esforço de acordo com a sua vontade : de maneira limitada ou ampla, resumida ou extensamente, de maneira liberal ou estrita, de todas as maneiras possíveis. Mas se alguém então, com a devida suavidade, considerar a natureza do Amor, sua alavanca de estanho, essa coisa humilde, o levará ao sucesso dourado e, depois, a aventuras prazerosas.


E agora, aquelas pequenas janelas no alto da gruta, habilmente escavadas diretamente na rocha, permitiam entrar o brilho do sol. A primeira é a Cordialidade, a segunda a Humildade e a última a Distinção; e através das três , sorria a luz suave daquele esplendor abençoado, a Honra, que de todas as luzes é a que melhor ilumina nossa gruta de aventura terrena.


E finalmente, é também significativo que a gruta esteja isolada num ermo. A interpretação deve ser que as oportunidades de Amor não se encontram nas ruas nem em campos abertos. Ela oculta-se em espaços selvagens. E o caminho até o seu refúgio é penoso e austero. Por todas as partes há montanhas, com muitos desvios, aqui e ali. As trilhas sobem e descem. As rochas nos martirizam, obstruindo o caminho . Não importa o quanto nos mantemos na trilha certa, se errarmos um único passo, jamais saberemos regressar. Mas quem tiver a boa sorte de penetrar naquele ermo, obterá ditosa recompensa. Pois encontrará ali, deleites para o seu coração. O ermo está abarrotado de tudo o que o seu ouvido deseja ouvir e do que agrada a sua vista; de maneira que ninguém desejaria estar em outro lugar. E isso eu sei muito bem, pois já estive lá. As pequenas janelas pelas quais o sol penetra, enviaram com frequência seus raios ao meu coração.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

4- Montanhas Eternas

“por amor ao mundo e para conformar os corações nobres, àqueles a quem eu prezo e aos que o meu coração sente-se atraído. Não estou me referindo ao mundo comum daqueles que (como ouvi dizer) são incapazes de suportar o sofrimento e desejam apenas viver da graça. (que Deus os permita viver na graça!) Desse mundo e do modo de vida destes, a minha história não trata : a vida deles e a minha estão distantes. É outro o mundo que tenho em mente, ele comporta num mesmo coração sua doçura amarga, seu precioso sofrimento, seu prazer espiritual, e sua dor anelante, sua vida grata e sua morte. É a esse mundo que desejo pertencer, para ser condenado ou para ser salvo por ele.” (Tristão – Gottfried von Strassburg, 1210).

(...)

há uma a acentuada linha de ascendência do Tristão de Gottfried até James Joyce (1882- 1941) e Thomas Man (1875- 1955), marcando em ritmo compassado , as mesmas etapas, data por data :

- 1903- Thomas Man

-1916- Um retrato do artista quando jovem- James Joyce

(tratam da separação de um jovem do contexto social de seu nascimento para buscar um destino pessoal , (...) cada qual resolvendo o seu dilema em um momento de intuição inspiradora

- 1922- Ulisses, James Joyce

-1924- A montanha mágica

(dois relatos de busca de um princípio fundamental revelador da existência em meio a uma mistura de critérios da civilização moderna.)

(...) porém não vou antecipar aqui as aventuras dessas páginas, alem de apontar que nos deteremos sobre o mistério do momento de arrebatamento estético , quando a possibilidade de uma vida como aventura abre-se a mente (...) depois o processo de criação de certos mestres , dedicados ao mesmo continuum de temas do nosso passado mais antigo e obscuro que, muito recentemente , foi posto a ferver no caldeirão de Finnegans Wake.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

As Máscaras de Deus

MITOLOGIA CRIATIVA (VOLUME 4)


PARTE I- A ANTIGA VIDEIRA

Cap. I- Experiência e autoridade

1)- Simbolização criativa

Nos volumes anteriores deste estudo sobre as transformações históricas daquelas formas imaginárias que chamo de “máscaras” de Deus (...) os mitos e ritos dos antigos mundos primitivo, oriental e ocidental (...)

(...) em nossa cultura ocidental recente (metade do sec. XII) uma crescente desintegração vem desmantelando a tradição ortodoxa (...). Com seu declínio irromperam as forças criativas liberadas por um grande grupo de destacados indivíduos, de maneira que (...) uma galáxia de mitologias (...).

(...) um tipo totalmente novo de revelação não-teológica, de grande alcance, profundidade e infinita variedade tornou-se o verdadeiro guia espiritual e força estruturante de uma civilização.

No contexto de uma mitologia tradicional os símbolos apresentam-se em ritos socialmente preservados (...) No que chamo “mitologia criativa” – essa ordem se inverte. O indivíduo tem uma experiência própria- de ordem, horror, beleza- que procura transmitir mediante sinais; e se sua vivência teve alguma profundidade e significado , sua comunicação terá o valor e a força de um mito vivo.

A primeira função da mitologia é reconciliar nossa consciência que desperta com o mysterium tremendum et fascinans deste Universo como ele é. A segunda é apresentar uma imagem interpretativa total do mesmo (...) é a revelação para a consciência dos poderes da sua própria fonte mantenedora. A terceira função, entretanto, é a imposição de uma ordem moral (...). A quarta função (mais crítica e vital) é auxiliar o indivíduo a encontrar seu centro e desenvolver-se integralmente em consonância (...) consigo, cultura, Universo e com aquele terrível e último mistério que está tanto fora, como dentro de si mesmo e de todas as coisas.

A mitologia criativa (...) “para mostrar à virtude a sua própria expressão; ao ridículo a sua própria imagem e a cada época e geração a sua própria esfígie. (...) provém da intuição sentimentos, pensamentos e visão de um indivíduo leal à sua própria experiência e valores. Dessa maneira ela reorienta a autoridade mantendo as formas que produziram e deixaram para trás vidas já vividas. Renovando o ato da própria experiência, resgata para a existência a qualidade de aventura, a uma só vez , descobrindo e reintegrando o estabelecido, o já conhecido, no fogo criativo desse algo em gestação constante, que não é senão a vida, (...) mas como ela é , em profundidade, em processo aqui e agora, dentro e fora.